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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Obediência, Castidade e Pobreza

 As reformas dos séculos XVI e XVII precisam ser entendidas também no contraponto do movimento monástico. Mesmo vivendo períodos cíclicos de vitalidade e decadência, o monasticismo teria sido o que de melhor fora produzido pela cristandade medieval, estabelecendo-se como espécie de termômetro da Igreja. Quando florescia, a Igreja melhorava, quando se corrompia, toda a igreja, de modo geral, entrava em período de crise. As reformas cluniense e cisterciense e os movimentos franciscano e dominicano, por exemplo, são momentos de revigoração da igreja que alcançam toda a sociedade medieval. No movimento de São Francisco de Assis, a ordem terceira, especialmente, teria sido responsável por uma restauração de princípios que atinge toda a sociedade medieval durante dois ou três séculos, amenizando mazelas e seqüelas de um feudalismo aristocrata e de imperialismos complexos.

Sendo Lutero monge agostiniano, a sua reforma, de início tímida, vai atingindo o coração da igreja católica romana, estabelecendo uma polarização gradativa, em que os princípios monásticos se colocarão cada vez mais distantes das vivências protestantes. Isso se torna mais importante ainda, lembrando-se que o monasticismo atingira então dimensões imensuráveis. Praticamente, cada cidade medieval tinha um ou mais mosteiros em seus arredores, fontes de influência positiva ou negativa, dependendo das circunstâncias. Os votos de pobreza, obediência e castidade, pilares do monasticismo haviam-se tornado de certa forma pilares da própria igreja, sendo impossível uma reforma que não atingisse esses votos. Também aquilo que seria desejo, propósito e estilo de vida teriam sido transformadas em virtudes em si mesmas, causando problemas teológicos, eclesiásticos e sociais de diversos teores.

Opondo-se à pobreza como virtude em si mesma, o que seria uma atitude teológica que conduziria a diversas libertações, o protestantismo seria levado a uma aliança cada vez mais forte com o capitalismo nascente, tornando-se riqueza e prosperidade sinal de bênção de Deus e critério de verificação de eleição predestinada. Na esteira disso, uma sacralização do trabalho em si, irá substituindo a santidade da pobreza, consolidando relações trabalhistas existentes, colocando sob suspeita ócio e lazer.

A questão dos votos de castidade acentua uma espécie de desconfiança eterna entre religião e sexualidade muito presente no cristianismo desde a sua origem. Durante as reformas, a sexualidade foi revista e repensada, sendo o casamento de padres, monges e freiras, o primeiro resultado alvissareiro, permissão de gozos terrenos não experimentados por muitos. Dois momentos posteriores ilustram o momento vivido. O primeiro, o divórcio de Henrique VIII, não autorizado pelo papa, mas autorizado por consultas teológicas vindas das universidades, sob influência dos novos tempos. Podemos constatar que a Reforma Anglicana foi deflagrada por uma questão de ordem sexual necessitada de nova teologia e de nova igreja para satisfazer os desejos de um monarca. O segundo momento, foi a consulta de Felipe de Hesse sobre a legitimidade da poligamia, para resolver seus assuntos particulares, que teve a aquiescência, pelo menos inicial, da teologia de Lutero.

Os votos de obediência nos levam à questão central da Reforma, o problema da autoridade. Contra a autoridade absoluta do papa, o protestantismo terá que administrar um sistema de autoridades relativas, com pouco espaço para autoridades não hierárquicas, coletivas, populares, muito menos sistemas democráticos, em que a mutualidade e a alternância se apresentam de modo mais forte. É dentro dessa administração de um conceito de autoridade hierárquica que Lutero praticamente autoriza a morte de camponeses sediciosos, chegando a santificar de antemão o massacre efetuado pelos senhores feudais, através de seu famoso panfleto “Contra a corja de camponeses assassinos e ladrões” em que afirmava previamente que prestava um serviço a Deus quem matasse um camponês rebelado, o que pode ser lido como uma espécie de carta de “indulgência protestante”.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Literatura de Cordel


Introdução

Materialmente, o “folheto” ou a “literatura de cordel”, o “cancioneiro nordestino”, “poesia popular”, ou ainda “literatura popular em verso”, “livrinho de feira”, livrinho de histórias matutas” conformou-se numa estrutura impressa em oito, dezesseis ou trinta e duas páginas de cerca de onze centímetros de largura por quinze de comprimento, narrativa disposta comumente em estrofes de seis versos seguindo a rima ABCBDB, encadernado com capas ilustradas com vinhetas, desenhos, fotografias ou xilogravuras. Conforme a temática abordada ou a trama desenvolvida recebeu classificações específicas: romance, história de valentia, desafio ou peleja, folheto de acontecido ou poema de época, folhetos religiosos, dentre outras. Popularizou-se chamar esta mídia de folheto de cordel por conta da forma que em alguns lugares ela era comercializada, qual seja, pendurada em cordões em barracas de feira, mesmo que outras formas de comercialização tenham sido muito utilizadas. Inserido num ambiente marcadamente oral, fora objeto de uso em sessão de leitura coletiva, não deixando, no entanto, de ser utilizado para o prazer da leitura individual. Pode ser considerado um “suporte de memória”, nas palavras de Ruth Terra[1] de uma poesia que normalmente é decorada, seja para regozijo pessoal ou para a performance de leitura perante um público.

O folheto de cordel tão associado à cultura nordestina tem como inspiração os folhetos populares disseminados pela Europa a partir dos séculos XV e XVI e que foram trazidos ao Brasil pelos portugueses. Muitos poetas nordestinos em contato com esses folhetos ibéricos adaptaram as narrativas em prosa para a estrutura poética a que nos referimos. No final do séc. XIX, a literatura de folhetos, caracterizada por sua identidade com histórias oriundas da tradição de oralidade, foi fortemente impulsionada pelo surgimento das tipografias no interior do Nordeste. A interiorização de uma maquinaria considerada obsoleta pela imprensa dos grandes centros proporcionou que histórias perpetuadas na memória e transmitidas através da oralidade ganhassem a dimensão da letra impressa e se difundissem em muitos espaços do sertão nordestino. O precursor desse processo de ampla disseminação dos folhetos foi Leandro Gomes de Barros, autor de uma vasta gama de histórias e responsável pela materialização das mesmas através de sua tipografia.

A partir do surgimento dessas tipografias, segundo Luli Hata,[2] o cordel estruturou-se em um sistema comercial e de produção poética envolvendo profissionais que lidam com o lado material (responsável pela subsistência), mas que se sustenta em um determinado saber e em uma estética. Além dos autores, editores, impressores, distribuidores e vendedores (os folheteiros) completam o grupo de profissionais ligados ao ramo da poesia. Muitas vezes estas atividades não eram excludentes sendo que um autor poderia ser responsável por todo o percurso comercial. Este período áureo para produção, transmissão e recepção dos folhetos populares alcança meados do séc. XX quando, segundo alguns estudiosos, a produção desta mídia demonstra sinais de crise ligada ao desenvolvimento técnico de veículos de comunicação a exemplo do rádio que irá inaugurar novas mediações nas relações oral/escrito/iconográfico.




[1] TERRA, Ruth. Memórias de Lutas: a literatura de folhetos no nordeste (1893-1930). São Paulo: Global Editora, 1983.
[2] HATA, Luli. O Cordel das Feiras às galerias. Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em Teoria Literária, sob orientação da Profª Drª Márcia Abreu, 1999.p. 18, 19.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Intolerância Religiosa em Salvador

(Estaremos publicando semanalmente o trabalho de pesquisa de Fernando Carneiro sobre "A Intolerância Religiosa das Igrejas Evangélicas de Salvador - Bahia na Atualidade".)

INTRODUÇÃO

 
Em todas as sociedades humanas, o processo histórico mostra de forma clara, a extrema dificuldade que homens e mulheres tiveram e têm, ainda hoje, em cultivar uma cultura de respeito pelas diferenças, sejam diferenças étnicas, de gênero ou de crenças religiosas. Mas, inegavelmente, a intolerância às crenças religiosas do outro, tem sido e ainda persiste, como a maior causadora de conflitos e preconceitos entre as pessoas, as nações e as demais sociedades humanas.
O contexto histórico-geográfico e cronológico em que se pesquisa esses conflitos de cunho religioso, neste trabalho acadêmico é a cidade de Salvador (Bahia), no Brasil, entre os anos de 2001 e 2009, onde se diagnosticou o agravamento do embate entre a maioria das denominadas igrejas evangélicas (SILVA, 2007, p. 9), a serem abordadas mais adiante, em confronto com as religiões de matriz africana ou religiões afro-brasileiras principalmente, caracterizando uma acirrada e agressiva intolerância religiosa por parte da maioria das aludidas comunidades religiosas cristãs.
Tem-se como resultado do processo histórico do Brasil, principalmente na Bahia e em Salvador, de forma específica, o entendimento que a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana tem suas origens do século XVI, em virtude do início do sistema escravocrata no Brasil, fruto da dominação portuguesa sobre várias sociedades africanas, onde seres humanos eram trazidos à força para o Brasil, na condição de escravos, para suprir a necessidade de mão-de-obra do sistema econômico colonial.
Apesar dessa origem historica, neste trabalho procura-se apontar algumas das causas dessa intolerância religiosa, bem como estabelecer os porquês da permanência de tal situação na atualidade, mesmo num estado de direito que possui uma constituição (carta magna) democrática, defensora dos direitos humanos e da pluralidade religiosa, onde proibe veementemente em seus artigos, toda e qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa. 
Procura-se também apontar no desenvolvimento desta pesquisa, as lutas e as reações das comunidades vitimadas com tal sentimento discriminatório, assim como as conquistas sócio-políticas articuladas por toda a sociedade da capital da Bahia.
Visando ainda, facilitar o entendimento da presente pesquisa, procurou-se realizar, inicialmente, uma breve abordagem sobre as religiões de matriz africana no Brasil, enfatizando-se o(s) Candomblé(s) e a Umbanda, assim como uma breve abordagem do protestantismo brasileiro, enfatizando-se segmento denominado de evangélico no Brasil. Tais abordagens objetivam apresentar o cenário religioso em questão (religiões de matriz africana e igrejas evangélicas) atualmente, da capital da Bahia.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Espaço e Tempo no Cristianismo Atual

A organização de protestantes e católicos possui peculiaridades que implicam em formas diferentes de relação com o espaço e com o tempo. A organização monocêntrica católica e a organização policêntrica protestante propõem diferentes espacializações e diferentes temporalizações que se desdobram em atitudes históricas diversas de relação com o mundo. No mundo católico, há uma clara predominância do espaço sobre o tempo, em configuração monolítica capaz de resistir ao processo histórico com bastante força. No mundo protestante, o tempo se sobrepõe ao espaço, não de forma uniforme, nem através de uma postura hierárquica contundente, mas o suficiente para permitir alianças mais evidentes com o desenrolar da história.

O espaço cristão, católico ou protestante, resiste ao tempo atual, denominado de pós-modernidade, mas de modos diferentes. Fortes parcelas da igreja protestante apresentam um híbrido de imersão pós-moderna com teologia fundamentalista, estranho e fascinante, ao mesmo tempo, enquanto possibilidades eclesiológicas e objeto de análise. Uma desterritorialização comandada pela ação corrosiva do tempo não parece provável no mundo católico, pelo menos a curto prazo. Ao mesmo tempo, as reterritorializações sucessivas do mundo protestante, são tanto comandadas pelos movimentos do tempo quanto resistentes aos mesmos.

Portanto, essa supremacia do tempo sobre o espaço no protestantismo não lhe encaminha imediatamente na direção das demandas conduzidas pelas novas configurações apresentadas pelo mundo de hoje. Um exemplo claro são as questões trazidas por uma bioética de um mundo tecnologicamente distante dos nossos referenciais cristãos. Enquanto os católicos organizam uma barricada de proteção sobre valores que precisam ser examinados mais acuradamente, os protestantes também resistem, com bem menos consistência, mas com alguns territórios a ensaiar formulações menos dogmáticas, permitidas pela sua herança.

De modo geral, o mundo cristão não parece estar preparado, por enquanto, para responder questões sobre pluralismo religioso, ecologia profunda, gênero, bioética, direito de minorias, carência evidenciada especialmente na sua abordagem sobre temas como aborto, sexualidade e diálogo inter-religioso, abertamente visível no tratamento quase histérico dispensado à possibilidade de medidas públicas de descriminalização do aborto, direito de homossexuais e valorização de religiões de matriz africana. Um ecumenismo quase impossível quando se trata de temáticas positivas, surge estranhamente quando se trata de condenar, proibir e demonizar dissidentes, hereges e infiéis. Nesses momentos, podemos perceber, católicos e protestantes, que há muito mais coisas que nos unem do que nos separam; infelizmente muito mais no tocante a práticas fundamentalistas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

As Sombras do Protestantismo


A religião é um tecido de fragilidades, coisas tão fluidas e tão tênues como a fé, a esperança e o amor, as três virtudes teologais. Talvez, por isso mesmo, lance-se na busca de fundamentos, alicerces que garantam a funcionalidade da vida e a certeza de salvações. Busca inútil e dolorosa, provocadora de dores evitáveis porque também inúteis. Fundamentar é o caminho cruel da intolerância que só pode chegar a fundamentalismos de diversas ordens e diversos teores, cristalizados nos “ismos”, dos quais catolicismo e protestantismo são as duas grandes amostras históricas. Enquanto princípios, “catolicidade” e “protestanticidade” descrevem tendências, princípios, forças existenciais necessárias e próprias do movimento cristão; transformadas em “ismos”, se constituem como grandes blocos cimentando a história, dificultando caminhos, proibindo aproximações.
 
Esse desejo de impossíveis alicerces talvez seja o fator que atrapalhe a religião de balançar feliz nas redes da pós-modernidade. A modernidade era o lugar das certezas, das maiúsculas, das construções concretas de único alicerce, a famosa monocausalidade de natureza linear. A gradativa substituição, presente em todos os lugares de investigação, de coisas (res extensa ou cogitans) por relações, a débâcle do raciocínio cartesiano, colocou-nos em um mundo diferente, mundo de minúsculas, de incertezas estruturais, de pluricausalidades de natureza recursiva.

Mas as grandes estruturas da modernidade precisam continuar, protegendo os seus alicerces (diga-se fundamentos) sem se incomodar que estejam carcomidos pelo tempo ou não existam mais. Para isso, precisam esconder as suas fragilidades, ocultar as suas sombras, derramando feixes de luz sobre os seus vitrais, garantindo que as ilusões tão pacientemente construídas prevaleçam a qualquer custo.

O protestantismo celebra a cada 31 de outubro a Reforma, em festas onde não há lugar para reflexão ou arrependimento sobre o massacre de camponeses apoiado por Lutero, a execução de anabatistas abençoada por Zwínglio, a fogueira calvinista onde ardeu o livre pensamento de Miguel Cervetto. Se somos herdeiros da Reforma, herdamos também a sua desconfiança, intolerância e hostilidade para movimentos populares, divergências doutrinárias e para o pensamento laico, não religioso. Se vivesse na Genebra de Calvino, Galileu também seria obrigado a se retratar diante das chamas da fogueira.

A intolerância, portanto, não é privilégio do catolicismo e a hostilidade diante da cultura grassa nos dois arraiais.

A belíssima obra do Padre Ibiapina, por exemplo, também carrega os seus senões. Jovenzinhos que traziam as suas violas e jovenzinhas que traziam as pontas de suas saias para as fogueiras santas, convencidos e convencidas pelos argumentos do pregador, ajudavam a construir um gueto religioso de preconceitos diversos. Contra o samba e contra o corpo, por exemplo. Eles iam cantando, segundo as Crônicas:

“Já morreu o samba
Já venceu Jesus
Ardam pontas e violas
Em honra da cruz
Todos os sambistas
Querem ter prazer
Venham ao pé da Cruz
Ver violas arder.”
(Hoonaert, Eduardo. Crônicas das Casas de Caridade: fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006, p. 89).

Mas a cruzada de Cristo contra a viola e contra o samba foi assumida com muito mais contundência pelo protestantismo brasileiro, demonstrando mais uma vez que em matéria de inquisição o catolicismo nunca esteve sozinho.

As sombras da Reforma que ajudaram a performar as nossas sombras, precisariam ser assumidas por nós, hoje em dia. Erich Fromm, por exemplo, estudando o fenômeno do autoritarismo e de sua introjeção cultural, defende que Lutero e Calvino foram dos homens mais rancorosos da história.

“Lutero e Calvino representam esta hostilidade difusa e generalizada. Isso não só no sentido de que estes dois homens, pessoalmente, pertenceram ao rol dos maiores rancorosos dentre as principais figuras da História, e por certo dentre os líderes religiosos, como igualmente, e o que é mais importante, no sentido de que suas doutrinas foram tingidas por essa hostilidade, só podendo atrair um grupo que também se achasse impelido por uma hostilidade intensa e reprimida.” (Fromm, Erich. O medo à liberdade. 13e. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 84).

Normalmente isso nos assusta; porque a tendência à beatificação e santificação de pessoas concretas, em sua complexidade, é tendência religiosa, de natureza universal. Todas as religiões produzem os seus santos, pessoas que pairam acima do bem e do mal. O perigo é que, escondidas as suas sombras, embarcamos acriticamente em sua luminosidade, esquecidos que sombras são resultantes de luz e, nesse jogo, tornamo-nos prolongamento do mesmo tipo de sombra, fascinados e atraídos pelo mesmo tipo duvidoso de luz.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Protestantismo e Candomblé

A terceira linha de pesquisa proposta pelo CEPESC, “protestantismo e candomblé” se constitui como um desafio, diante de uma violência simbólica responsável por atos de intolerância de diversas naturezas.
As relações entre o protestantismo e o candomblé são complexas, especialmente em sua vivência prática. Afastamento, antagonismo, intolerância, marcam a maior parte das posturas dos grupos protestantes, encontrando-se, porém, mesmo que raramente, atitudes dialogais.
O candomblé no Brasil se caracterizou como religião de resistência da cultura negra, fortalecendo-se gradativamente, em uma forçada clandestinidade, até ser admitida como expressão legítima de religiosidade do povo, tanto quanto as religiões cristãs e todas as outras religiões.
Por outro lado, ainda é generalizado o preconceito que concebe o candomblé, junto com outras religiões de matriz africana e indígena, como forma inferior “primitiva” de culto, sendo a demonização dos orixás um exemplo desse tipo de atitude.
Um olhar não preconceituoso pode enxergar bondade e beleza, ali onde se espera sempre conflito e ambigüidade. O sofrimento causado pela intolerância religiosa nos convida a rever atitudes. Tolerância e respeito são desejáveis urgentemente, mas insuficientes para dar conta da totalidade do fenômeno do qual nos acercamos.
A celebração do outro é o caminho para admitir que a alteridade não ameaça a minha identidade, mas é condição e possibilidade da mesma. A festa da humanidade precisa das diferenças para continuar sendo festa.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Ser Protestante no Mundo de Hoje

Por Marcos Monteiro

Se o fetiche da palavra escrita produz a Reforma Protestante, é a invenção da imprensa que se torna mola propulsora, caminho de divulgação das idéias que produzem a crítica da tradição e do dogmatismo e instrumentalizam a insatisfação com o controle autoritário de uma estrutura construída durante a Idade Média, direito canônico que se postava de vigia sobre todos os aspectos da vida.

Um desejo de liberdade, construído de modo marginal, encontrava na personalidade vigorosa de Lutero e Calvino, entre outros, vontade inquebrantável de luta por uma reestruturação da Igreja, lembrando que Lutero inicialmente não propôs rupturas, mas reformas internas de caráter teológico, debate universitário já estabelecido, normalmente julgado de modo acadêmico. As famosas “noventa e cinco teses” são teologicamente moderadas, menos contundentes, por exemplo do que outras 97, escritas e debatidas quase dois meses antes, por ocasião da obtenção do grau de bacharel em Estudos Bíblicos de um aluno, Francisco Gunther, da depois famosa Faculdade de Teologia de Wittenberg. Essas teses passaram despercebidas pela história.

O tumulto causado pelas “noventa e cinco teses” deve-se muito mais a fatores políticos do que religiosos e causa rápida comoção pela rápida propagação possibilitada pela difusão das gráficas capazes de imprimir milhares de exemplares. Oficinas desse teor encontravam-se praticamente em cada cidade da Europa, impressionante rede de reprodução de literatura impressa, menos de um século depois da invenção de Gutemberg.

No final do ano de 1521, já condenado pelo papa e pelo imperador, Lutero encontrou no refúgio do castelo de Wartburg uma dessas gráficas capaz de mantê-lo ativo no cenário político e eclesiástico de então. Época de escritos contundentes e da elaboração de sua maior arma, uma tradução da Bíblia para o alemão popular, capaz de ser entendida pelo povo já se acostumando a um acesso à palavra escrita, impossível em outros tempos. A autoridade e o fascínio da palavra escrita foram estabelecidos como arma contra o dogmatismo eclesiástico e o autoritarismo imperial.

Nesses novos tempos assistimos a fenômenos diferentes e paradoxais. Essa mesma palavra escrita pode agora ser usada não contra o autoritarismo e dogmatismo, mas exatamente para justificá-los. Portanto, de fonte de libertação pode passar a ser usada como fonte de consolidação de opressões e discriminações, esvaziamento e inversão próprios das tradições. As tradições são processos históricos de esquecimento e de afastamento das origens. Curiosamente, as origens também não podem estar acima da crítica, quando isto acontece legitimam paradoxalmente seu próprio afastamento.

Há fenômenos no mundo europeu da Reforma que nos aproximam do mundo de hoje. A imprensa transformou a Europa em uma aldeia, do mesmo modo que as multimídias transformaram o mundo todo em um pequeno vilarejo. Há novidades incomparáveis, porém, nesse novo aldeamento. A palavra escrita vem com uma velocidade igual à da luz, capaz de informar o mundo sobre alguma coisa em segundos. E vem acompanhada. Imagens, sons, músicas, podem ser partilhados imediatamente através das redes sociais de dimensões planetárias.

A polissemia da palavra, portanto, torna-se também polissemia das imagens e de outros elementos estéticos. Não estamos mais no século XVI, igualmente, em todas as facetas da sociedade e da vida. Inevitavelmente todas as questões antigas, mesmo quando permanecem (algumas desapareceram), precisam ser tratadas de outras maneiras. A recorrência de modelos antigos, como as teocracias, por exemplo, tem se mostrado desastrosa. Nesse novo mundo, dentro de nossas diversas tradições, todos estamos procurando respostas a perguntas que rapidamente se levantam e parecem ter caráter de urgência. Ser protestante no mundo de hoje tem de ser parecido, mas também diferente de ser protestante na Europa pós-medieval.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Implasntação Missionária Protestante e Cultura Brasileira

Por Marcos Monteiro
À medida que nos aproximamos da pesquisa da religiosidade popular, a partir da inserção missionária do Padre Ibiapina, das atividades do Conselheiro e da vida e obra do Padre Cícero, podemos constatar que esses movimentos coincidem com o período de inserção maior do protestantismo no Brasil. A última metade do século XIX e a primeira metade do século XX, se constituem como o período de uma verdadeira “invasão protestante”. Essa implantação missionária traz algumas coisas de uma história onde a vocação centrífuga do protestantismo já vem se estabelecendo, alcançando o Brasil não somente como movimento diversificado, mas como grupos cristãos que se opõem tanto ao catolicismo nativo quanto entre si, trazendo suas polêmicas européias ou norte-americanas em torno de doutrinas consideradas essenciais para as suas próprias configurações.
Anglicanos, metodistas, presbiterianos, congregacionais, batistas, trazem um evangelho protestante para o Brasil católico (por conseguinte não-cristão, segundo raciocínio que ainda hoje persiste), a partir de suas premissas e estruturas, tanto espalhando panfletos contra doutrinas católicas como purgatório, culto à Virgem e devoção aos santos, quanto estabelecendo disputas entre si sobre forma de batismo, batismo de crianças e significado da Ceia, por exemplo. Um conceito de verdade como coisa, objeto passível de apropriação (e de manipulação, por assim dizer), subjaz a todo essa febril atividade missionária. Essa verdade está escrita, documentada, indisponível, portanto, para uma população analfabeta que fabricaria uma religiosidade de segunda classe, sob o olhar complacente e conivente de uma igreja que não estaria interessada na salvação da humanidade.
Obviamente, o preconceito contra a religiosidade popular não era privilégio protestante. O catolicismo oficial não olhava com bons olhos as figuras carismáticas de Ibiapina, Conselheiro e do Padre Cícero. Desconfiança, denúncias e punições, marcaram a trajetória desses homens; menos um pouco, talvez, para o Padre Ibiapina, pela sua história de vida e ligação mais forte com figuras institucionais. Mas, o protestantismo era um fruto mais legítimo da modernidade e um racionalismo cada vez mais forte enxugava símbolos, ritos e práticas que parecessem irracionais, buscando sempre na Bíblia a base de sua crítica, ou seja, na palavra escrita.
Igualmente, uma ética ascética, impossível de se harmonizar com uma cultura rica de elementos sensuais, vai inspirar uma ação evangelizadora de confrontação, agora já não somente perante a base doutrinária, mas sobre as vivências cotidianas do povo, especialmente das classes mais simples. Fumo, álcool, jogo, danças, começarão a ser alvo de ataques e sinais de demarcação entre crentes (os protestantes) e descrentes (os católicos).
Atitude diferente, somente para comparar, era a de Antônio Conselheiro, por exemplo. Na utópica Canudos, fuma-se, bebe-se e dança-se com moderação. Intérprete da palavra escrita, Bíblia e especialmente um breviário, Antônio Vicente Mendes Maciel, invectiva, como um bom missionário, contra a imoralidade, o roubo, o assassinato e outras coisas mais, como as famosas “umbigadas”, parte da coreografia da dança do “coco”. Na presença dele, estas nunca aconteciam. Sabiamente, porém, se afastava o suficiente para o povo continuar a dança à sua maneira de costume. Esse seria um dos exemplos, mencionados por Eduardo Hoonaert, sobre a habilidade de “negociador do sagrado” do Antônio Conselheiro. Assim, tradições escritas e vivências orais seriam mais bem relacionadas, e o cristianismo ia encontrando os seus próprios caminhos através dessas diversas mediações.
Diferentemente, manejando a Bíblia como espada que corta todo o mal presente na cultura, o protestantismo vai fazendo de uma contracultura (com forte sotaque de cultura estrangeira) sua arma e seu objetivo máximo. Nos primeiros momentos, leva desvantagem. À medida, porém, que a sua “verdade”, escrita e coisificada, vai sendo implantada, o orgulho do letramento e do ser diferente vai prevalecendo, mesmo quando um pentecostalismo mais latino e extático torna-se o mote de sua criatividade. Hoje, assistimos a um momento difícil de ser analisado. O movimento protestante, incluindo pentecostais e pós-pentecostais, cresceu muito. A relação protestantismo e cultura, mesmo mantendo traços muito fortes de sua fase de implantação, está passando por configurações complexas, muito provavelmente em fase de transição.