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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Uma Breve Abordagem sobre as Religiões de Matriz Africana

De forma genérica, são conhecidas por religiões de matriz africana ou afro-brasileiras, as religiões que possuem em sua constituição sincrética, seja esta doutrinária, teológica ou mitológica, uma preponderância das cosmogonias[1] do continente africano. No Brasil, as mais conhecidas são o(s) Candomblé(s) e a Umbanda. Estas religiões, de acordo com Vagner da Silva (2007, p. 12) abrangem inúmeras comunidades que diferem entre si, de acordo com as combinações e influências das matrizes: o catolicismo popular brasileiro, as religiões indígenas brasileiras e as religiões africanas.

As práticas religiosas populares (catolicismo popular, indígenas e africanas), eram vivenciadas por populações discriminadas na sociedade colonial (mestiços, índios, negro e seus descendentes e pobres em geral), por esse motivo, na documentação da época, que discorreu sobre as religiões afro-brasileiras, constatou-se uma abordagem pejorativa e associativa às práticas demoníacas, em virtude dos interesses dominantes, que tinham como objetivo combater essas religiões em benefício da supremacia da religião oficial   da colônia (catolicismo romano importado de Portugal).

As religiões afro-brasileiras apresentam-se como comunidades religiosas organizadas na sociedade, plenamente autônomas em relação às demais, com liturgia independente não havendo, consequentemente, autoridades superiores sobre os terreiros. Segundo Vagner Silva (2007, p. 30), há várias expressões usadas para identificar o lugar de culto dessas comunidades religiosas: “Os templos de candomblé são genericamente conhecidos por ‘terreiros’, ‘roça’, ‘casa de santo’ ou pelos termos de origem ioruba: ‘ilê’ (casa), ‘abassá’ (salão), ‘axé’ (força) ou ‘egbé’ (comunidade)”.

Os terreiros constituem-se nos espaços sagrados [2]para os candomblés, onde são realizados os ritos[3], fundamentados nos mitos[4] africanos. Nessas casas-de-santo, além dos ensinamentos religiosos, são transmitidos aos seus frequentadores e fiéis, toda uma memória étnico-cultural identitária africana.

Vale ressaltar, que toda a transmissão de conhecimentos é feita através da tradição oral[5], no entanto, os segredos ou mistérios[6] são transmitidos, somente, aos iniciados na religião, em consequência, as religiões de matriz africana não apresentam-se como religiões de conversão,ou seja, que têm a finalidade de convencimento e conversão dos indivíduos às suas doutrinas estabelecidas como verdades, desta forma, os terreiros mantêm-se independentes entre si, quanto às doutrinas, não tendo a necessidade de fazer prosélitos (novos convertidos). (SILVA, 2007, p. 12).

Pautando-se na expressão fenomenológica, essas religiões, são caracterizadas como religiões de transe (êxtase religioso), uma vez que ocorre a hierofania[7], através de possessão ou incorporação. Fazendo parte do conjunto das expressões religiosas, têm-se os ritos sacrificiais[8] com animais, vegetais e minerais, a fim de realizar culto à entidades espirituais ou às representações das forças da natureza.

Todas essas teologias são originárias de uma cosmovisão (mitologias, cosmogonias, filosofias, liturgias, tipo de organização social, etc.) africana ou indígena, possuidoras de valores diferentes da concepção judaico-cristã, dominante na sociedade brasileira, desde o período do Brasil colonial. Certamente, pelo fato das sociedades africanas viverem outro sistema de valores, diferente dos valores da sociedade colonial européia, elaborou-se um conceito pejorativo a cerca das religiões africanas e por com seguinte das religiões afro-brasileiras:

Somado ao desconhecimento sobre seu funcionamento e valores, elas acabam sendo vítimas de certos estereótipos como ‘magia negra’ (por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualística do bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs), superstições de ‘gente ignorante’, ‘cultos diabólicos’, etc. (SILVA, 2007, p. 14, grifo nosso).

O modo de ver o mundo, influencia significativamente nas práticas sociais de um grupo, portanto, os fundamentos mitológicos africanos (mitos), associados a outros significativos do fenômeno religioso (as manifestações do sagrado), complementam o entendimento da memória simbólica desses grupos sociais escravizados e de seus descendentes, aqui no Brasil, ditando práticas sociais diferentes das encontradas aqui, imposta pelo colonizador (mitologia e cosmovisão judaico-cristã). A este respeito, José Severino Croatto, afirma que:
Uma vez definido o mito, consideradas suas relações com o símbolo e estabelecida sua dupla tipologia (‘geográfica’ e funcional), é preciso avançar para compreender as múltiplas implicações que tem no campo das práticas sociais e, em conseqüência, na própria cosmovisão de um determinado grupo. (2001, p. 271).

Há uma questão essencial que liga os candomblés da Bahia às culturas africanas: a relação de resgate, sobrevivência e manutenção das identidades étnico-culturais das populações africanas e seus descendentes. Segundo Maria Joaquim, além da questão de identidade, os candomblés também tiveram seu papel como aglutinadores e organizadores sociais:

O candomblé tem um papel importante no ressurgimento da cultura afro-brasileira na Bahia, porque manteve o negro unido, como associação. As pessoas no terreiro ficavam juntas, as velhas africanas tinham oportunidade de falar sobre os ascendentes, refletiam e resgatavam suas identidades. O candomblé contribuiu na ligação do negro com a cultura africana. (Mãe Cléo apud JOAQUIM, 2001, p. 30, grifo nosso).


No estudo sobre construção de identidade negra no Brasil, identifica-se em Salvador, uma outra característica dos candomblés, neste caso, especificamente os candomblés de matriz nagô[9]: a concentração do poder religioso nas mãos das mulheres, ou seja, as mulheres detém o poder espiritual na maioria dos terreiros nagôs, sendo portando, as agentes principais de resgate, manutenção e transmissão das identidades culturais e religiosas africanas, de acordo com as conclusões da pesquisa de Maria Joaquim, quando afirma:

O lugar onde os negros da Bahia realizavam as suas festas religiosas era chamado terreiro, roça, aldeia, casa ou Axé. Os candomblés situavam-se no meio do mato ou nos arrabaldes e subúrbios mais afastados da cidade. Em geral, eram localizados em sítios de difícil acesso, como Casa Branca,, Tumba Junsara, Oxumarê e Gantóis, na Avenida Vasco da Gama no Engenho Velho; Axé Opô Afonjá, Bate Folha e Cacunda de Iyá Iyá, na Mata Escura ou Cabula; Alaketo e Maroketo no Bairro de Brotas.
É interessante constatar que os principais terreiros de candomblé Nagô são dirigidos por mulheres e os de origem Bantu, por homens. (2001, p. 31, grifo nosso)


Concluindo, as denominadas religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras, tratadas neste trabalho localizam-se em vários pontos do Brasil e possuem suas construções teológicas com forte fundamentação na tradição oral (não se baseiam em livros sagrados) herdadas das religiões autóctones africanas, além de influências das religiões das sociedades indígenas brasileiras, do catolicismo popular, e do espiritismo kardecista (no caso da Umbanda).

As religiões afro-brasileiras apresentando-se através de distintas formas litúrgicas (língua, ritos, mitos, símbolos, etc.), uma vez que receberam fundamentos de diferentes sociedades do continente africano e americano, distinguindo-se entre si, quanto à mitologia, à língua e à cosmogonia, constituindo-se equívoco conceitual o fato das religiões afro-brasileiras serem apresentadas como uma religião única, desprezando-se a diversidade cultural, linguística, mitológica e cosmogônica africana, indígena e européia.

Coexistindo e conciliando-se a essa constituição sincrética de diferentes religiões e culturas, existem algumas concepções originárias do continente africano que são comuns a todas as sociedades antigas e autóctones, que ainda estão presentes na memória dessas sociedades e de seus descendentes aqui no Brasil. Tais concepções são consolidadas na expressão africanidade, que será discorrido a seguir.



[1] Originário do grego Kosmognia: criação do mundo) Teoria sobre a origem do *universo, geralmente fundada em *lendas ou em *mitos e ligada a uma metafísica. Em sua origem, designa toda a explicação da formação do universo e dos objetos celestes. Atualmente, designa as explicações de caráter mítico. 
[2] Os espaços sagrados são compreendidos pelo homem religioso como em oposição ao espaço profano. Os espaços sagrados são compreendidos como reproduções dos arquétipos celestes ou divinos.
[3] Os ritos compreendem uma da linguagem religiosa, expressando a repetição das ações do sagrado nos tempos primordiais, ou seja, uma imitação do que fizeram os deuses. É através dos ritos que o homem religioso entra em comunhão com o sagrado. O rito faz o que o mito diz.
[4] Os mitos são relatos de acontecimentos primordiais em tempos sagrados, narrando a ação dos deuses e dando sentido a uma realidade. Nos mitos os atores principais são os deuses.
[5] A tradição oral ou oralidade é a forma de transmissão de conhecimentos históricos, sagrados, mitológicos através da palavra falada, não se baseando na escrita.
[6] Mistério é algo sagrado, secreto de significado ou causa escondida.
[7] É a manifestação do sagrado, da divindade, uma vez que, o ser humano só toma conhecimento do sagrado, porque ele se manifesta de forma diferente do profano.
[8] É o tipo de rito onde realiza-se um sacrifício, ou seja, fazer que alguma coisa seja sagrada; refer-se também a uma oferenda à divindade, ou seja, algo é consagrado a um deus.
[9] Grupo étnolinguístico originário da região de Keto na Nigéria, compondo o grupo dos povos de língua iorubá, onde têm presença marcante na cidade do salvador, a partir do século XIX.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Obediência, Castidade e Pobreza

 As reformas dos séculos XVI e XVII precisam ser entendidas também no contraponto do movimento monástico. Mesmo vivendo períodos cíclicos de vitalidade e decadência, o monasticismo teria sido o que de melhor fora produzido pela cristandade medieval, estabelecendo-se como espécie de termômetro da Igreja. Quando florescia, a Igreja melhorava, quando se corrompia, toda a igreja, de modo geral, entrava em período de crise. As reformas cluniense e cisterciense e os movimentos franciscano e dominicano, por exemplo, são momentos de revigoração da igreja que alcançam toda a sociedade medieval. No movimento de São Francisco de Assis, a ordem terceira, especialmente, teria sido responsável por uma restauração de princípios que atinge toda a sociedade medieval durante dois ou três séculos, amenizando mazelas e seqüelas de um feudalismo aristocrata e de imperialismos complexos.

Sendo Lutero monge agostiniano, a sua reforma, de início tímida, vai atingindo o coração da igreja católica romana, estabelecendo uma polarização gradativa, em que os princípios monásticos se colocarão cada vez mais distantes das vivências protestantes. Isso se torna mais importante ainda, lembrando-se que o monasticismo atingira então dimensões imensuráveis. Praticamente, cada cidade medieval tinha um ou mais mosteiros em seus arredores, fontes de influência positiva ou negativa, dependendo das circunstâncias. Os votos de pobreza, obediência e castidade, pilares do monasticismo haviam-se tornado de certa forma pilares da própria igreja, sendo impossível uma reforma que não atingisse esses votos. Também aquilo que seria desejo, propósito e estilo de vida teriam sido transformadas em virtudes em si mesmas, causando problemas teológicos, eclesiásticos e sociais de diversos teores.

Opondo-se à pobreza como virtude em si mesma, o que seria uma atitude teológica que conduziria a diversas libertações, o protestantismo seria levado a uma aliança cada vez mais forte com o capitalismo nascente, tornando-se riqueza e prosperidade sinal de bênção de Deus e critério de verificação de eleição predestinada. Na esteira disso, uma sacralização do trabalho em si, irá substituindo a santidade da pobreza, consolidando relações trabalhistas existentes, colocando sob suspeita ócio e lazer.

A questão dos votos de castidade acentua uma espécie de desconfiança eterna entre religião e sexualidade muito presente no cristianismo desde a sua origem. Durante as reformas, a sexualidade foi revista e repensada, sendo o casamento de padres, monges e freiras, o primeiro resultado alvissareiro, permissão de gozos terrenos não experimentados por muitos. Dois momentos posteriores ilustram o momento vivido. O primeiro, o divórcio de Henrique VIII, não autorizado pelo papa, mas autorizado por consultas teológicas vindas das universidades, sob influência dos novos tempos. Podemos constatar que a Reforma Anglicana foi deflagrada por uma questão de ordem sexual necessitada de nova teologia e de nova igreja para satisfazer os desejos de um monarca. O segundo momento, foi a consulta de Felipe de Hesse sobre a legitimidade da poligamia, para resolver seus assuntos particulares, que teve a aquiescência, pelo menos inicial, da teologia de Lutero.

Os votos de obediência nos levam à questão central da Reforma, o problema da autoridade. Contra a autoridade absoluta do papa, o protestantismo terá que administrar um sistema de autoridades relativas, com pouco espaço para autoridades não hierárquicas, coletivas, populares, muito menos sistemas democráticos, em que a mutualidade e a alternância se apresentam de modo mais forte. É dentro dessa administração de um conceito de autoridade hierárquica que Lutero praticamente autoriza a morte de camponeses sediciosos, chegando a santificar de antemão o massacre efetuado pelos senhores feudais, através de seu famoso panfleto “Contra a corja de camponeses assassinos e ladrões” em que afirmava previamente que prestava um serviço a Deus quem matasse um camponês rebelado, o que pode ser lido como uma espécie de carta de “indulgência protestante”.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Literatura de Cordel


Introdução

Materialmente, o “folheto” ou a “literatura de cordel”, o “cancioneiro nordestino”, “poesia popular”, ou ainda “literatura popular em verso”, “livrinho de feira”, livrinho de histórias matutas” conformou-se numa estrutura impressa em oito, dezesseis ou trinta e duas páginas de cerca de onze centímetros de largura por quinze de comprimento, narrativa disposta comumente em estrofes de seis versos seguindo a rima ABCBDB, encadernado com capas ilustradas com vinhetas, desenhos, fotografias ou xilogravuras. Conforme a temática abordada ou a trama desenvolvida recebeu classificações específicas: romance, história de valentia, desafio ou peleja, folheto de acontecido ou poema de época, folhetos religiosos, dentre outras. Popularizou-se chamar esta mídia de folheto de cordel por conta da forma que em alguns lugares ela era comercializada, qual seja, pendurada em cordões em barracas de feira, mesmo que outras formas de comercialização tenham sido muito utilizadas. Inserido num ambiente marcadamente oral, fora objeto de uso em sessão de leitura coletiva, não deixando, no entanto, de ser utilizado para o prazer da leitura individual. Pode ser considerado um “suporte de memória”, nas palavras de Ruth Terra[1] de uma poesia que normalmente é decorada, seja para regozijo pessoal ou para a performance de leitura perante um público.

O folheto de cordel tão associado à cultura nordestina tem como inspiração os folhetos populares disseminados pela Europa a partir dos séculos XV e XVI e que foram trazidos ao Brasil pelos portugueses. Muitos poetas nordestinos em contato com esses folhetos ibéricos adaptaram as narrativas em prosa para a estrutura poética a que nos referimos. No final do séc. XIX, a literatura de folhetos, caracterizada por sua identidade com histórias oriundas da tradição de oralidade, foi fortemente impulsionada pelo surgimento das tipografias no interior do Nordeste. A interiorização de uma maquinaria considerada obsoleta pela imprensa dos grandes centros proporcionou que histórias perpetuadas na memória e transmitidas através da oralidade ganhassem a dimensão da letra impressa e se difundissem em muitos espaços do sertão nordestino. O precursor desse processo de ampla disseminação dos folhetos foi Leandro Gomes de Barros, autor de uma vasta gama de histórias e responsável pela materialização das mesmas através de sua tipografia.

A partir do surgimento dessas tipografias, segundo Luli Hata,[2] o cordel estruturou-se em um sistema comercial e de produção poética envolvendo profissionais que lidam com o lado material (responsável pela subsistência), mas que se sustenta em um determinado saber e em uma estética. Além dos autores, editores, impressores, distribuidores e vendedores (os folheteiros) completam o grupo de profissionais ligados ao ramo da poesia. Muitas vezes estas atividades não eram excludentes sendo que um autor poderia ser responsável por todo o percurso comercial. Este período áureo para produção, transmissão e recepção dos folhetos populares alcança meados do séc. XX quando, segundo alguns estudiosos, a produção desta mídia demonstra sinais de crise ligada ao desenvolvimento técnico de veículos de comunicação a exemplo do rádio que irá inaugurar novas mediações nas relações oral/escrito/iconográfico.




[1] TERRA, Ruth. Memórias de Lutas: a literatura de folhetos no nordeste (1893-1930). São Paulo: Global Editora, 1983.
[2] HATA, Luli. O Cordel das Feiras às galerias. Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em Teoria Literária, sob orientação da Profª Drª Márcia Abreu, 1999.p. 18, 19.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Intolerância Religiosa em Salvador

(Estaremos publicando semanalmente o trabalho de pesquisa de Fernando Carneiro sobre "A Intolerância Religiosa das Igrejas Evangélicas de Salvador - Bahia na Atualidade".)

INTRODUÇÃO

 
Em todas as sociedades humanas, o processo histórico mostra de forma clara, a extrema dificuldade que homens e mulheres tiveram e têm, ainda hoje, em cultivar uma cultura de respeito pelas diferenças, sejam diferenças étnicas, de gênero ou de crenças religiosas. Mas, inegavelmente, a intolerância às crenças religiosas do outro, tem sido e ainda persiste, como a maior causadora de conflitos e preconceitos entre as pessoas, as nações e as demais sociedades humanas.
O contexto histórico-geográfico e cronológico em que se pesquisa esses conflitos de cunho religioso, neste trabalho acadêmico é a cidade de Salvador (Bahia), no Brasil, entre os anos de 2001 e 2009, onde se diagnosticou o agravamento do embate entre a maioria das denominadas igrejas evangélicas (SILVA, 2007, p. 9), a serem abordadas mais adiante, em confronto com as religiões de matriz africana ou religiões afro-brasileiras principalmente, caracterizando uma acirrada e agressiva intolerância religiosa por parte da maioria das aludidas comunidades religiosas cristãs.
Tem-se como resultado do processo histórico do Brasil, principalmente na Bahia e em Salvador, de forma específica, o entendimento que a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana tem suas origens do século XVI, em virtude do início do sistema escravocrata no Brasil, fruto da dominação portuguesa sobre várias sociedades africanas, onde seres humanos eram trazidos à força para o Brasil, na condição de escravos, para suprir a necessidade de mão-de-obra do sistema econômico colonial.
Apesar dessa origem historica, neste trabalho procura-se apontar algumas das causas dessa intolerância religiosa, bem como estabelecer os porquês da permanência de tal situação na atualidade, mesmo num estado de direito que possui uma constituição (carta magna) democrática, defensora dos direitos humanos e da pluralidade religiosa, onde proibe veementemente em seus artigos, toda e qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa. 
Procura-se também apontar no desenvolvimento desta pesquisa, as lutas e as reações das comunidades vitimadas com tal sentimento discriminatório, assim como as conquistas sócio-políticas articuladas por toda a sociedade da capital da Bahia.
Visando ainda, facilitar o entendimento da presente pesquisa, procurou-se realizar, inicialmente, uma breve abordagem sobre as religiões de matriz africana no Brasil, enfatizando-se o(s) Candomblé(s) e a Umbanda, assim como uma breve abordagem do protestantismo brasileiro, enfatizando-se segmento denominado de evangélico no Brasil. Tais abordagens objetivam apresentar o cenário religioso em questão (religiões de matriz africana e igrejas evangélicas) atualmente, da capital da Bahia.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Espaço e Tempo no Cristianismo Atual

A organização de protestantes e católicos possui peculiaridades que implicam em formas diferentes de relação com o espaço e com o tempo. A organização monocêntrica católica e a organização policêntrica protestante propõem diferentes espacializações e diferentes temporalizações que se desdobram em atitudes históricas diversas de relação com o mundo. No mundo católico, há uma clara predominância do espaço sobre o tempo, em configuração monolítica capaz de resistir ao processo histórico com bastante força. No mundo protestante, o tempo se sobrepõe ao espaço, não de forma uniforme, nem através de uma postura hierárquica contundente, mas o suficiente para permitir alianças mais evidentes com o desenrolar da história.

O espaço cristão, católico ou protestante, resiste ao tempo atual, denominado de pós-modernidade, mas de modos diferentes. Fortes parcelas da igreja protestante apresentam um híbrido de imersão pós-moderna com teologia fundamentalista, estranho e fascinante, ao mesmo tempo, enquanto possibilidades eclesiológicas e objeto de análise. Uma desterritorialização comandada pela ação corrosiva do tempo não parece provável no mundo católico, pelo menos a curto prazo. Ao mesmo tempo, as reterritorializações sucessivas do mundo protestante, são tanto comandadas pelos movimentos do tempo quanto resistentes aos mesmos.

Portanto, essa supremacia do tempo sobre o espaço no protestantismo não lhe encaminha imediatamente na direção das demandas conduzidas pelas novas configurações apresentadas pelo mundo de hoje. Um exemplo claro são as questões trazidas por uma bioética de um mundo tecnologicamente distante dos nossos referenciais cristãos. Enquanto os católicos organizam uma barricada de proteção sobre valores que precisam ser examinados mais acuradamente, os protestantes também resistem, com bem menos consistência, mas com alguns territórios a ensaiar formulações menos dogmáticas, permitidas pela sua herança.

De modo geral, o mundo cristão não parece estar preparado, por enquanto, para responder questões sobre pluralismo religioso, ecologia profunda, gênero, bioética, direito de minorias, carência evidenciada especialmente na sua abordagem sobre temas como aborto, sexualidade e diálogo inter-religioso, abertamente visível no tratamento quase histérico dispensado à possibilidade de medidas públicas de descriminalização do aborto, direito de homossexuais e valorização de religiões de matriz africana. Um ecumenismo quase impossível quando se trata de temáticas positivas, surge estranhamente quando se trata de condenar, proibir e demonizar dissidentes, hereges e infiéis. Nesses momentos, podemos perceber, católicos e protestantes, que há muito mais coisas que nos unem do que nos separam; infelizmente muito mais no tocante a práticas fundamentalistas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

As Sombras do Protestantismo


A religião é um tecido de fragilidades, coisas tão fluidas e tão tênues como a fé, a esperança e o amor, as três virtudes teologais. Talvez, por isso mesmo, lance-se na busca de fundamentos, alicerces que garantam a funcionalidade da vida e a certeza de salvações. Busca inútil e dolorosa, provocadora de dores evitáveis porque também inúteis. Fundamentar é o caminho cruel da intolerância que só pode chegar a fundamentalismos de diversas ordens e diversos teores, cristalizados nos “ismos”, dos quais catolicismo e protestantismo são as duas grandes amostras históricas. Enquanto princípios, “catolicidade” e “protestanticidade” descrevem tendências, princípios, forças existenciais necessárias e próprias do movimento cristão; transformadas em “ismos”, se constituem como grandes blocos cimentando a história, dificultando caminhos, proibindo aproximações.
 
Esse desejo de impossíveis alicerces talvez seja o fator que atrapalhe a religião de balançar feliz nas redes da pós-modernidade. A modernidade era o lugar das certezas, das maiúsculas, das construções concretas de único alicerce, a famosa monocausalidade de natureza linear. A gradativa substituição, presente em todos os lugares de investigação, de coisas (res extensa ou cogitans) por relações, a débâcle do raciocínio cartesiano, colocou-nos em um mundo diferente, mundo de minúsculas, de incertezas estruturais, de pluricausalidades de natureza recursiva.

Mas as grandes estruturas da modernidade precisam continuar, protegendo os seus alicerces (diga-se fundamentos) sem se incomodar que estejam carcomidos pelo tempo ou não existam mais. Para isso, precisam esconder as suas fragilidades, ocultar as suas sombras, derramando feixes de luz sobre os seus vitrais, garantindo que as ilusões tão pacientemente construídas prevaleçam a qualquer custo.

O protestantismo celebra a cada 31 de outubro a Reforma, em festas onde não há lugar para reflexão ou arrependimento sobre o massacre de camponeses apoiado por Lutero, a execução de anabatistas abençoada por Zwínglio, a fogueira calvinista onde ardeu o livre pensamento de Miguel Cervetto. Se somos herdeiros da Reforma, herdamos também a sua desconfiança, intolerância e hostilidade para movimentos populares, divergências doutrinárias e para o pensamento laico, não religioso. Se vivesse na Genebra de Calvino, Galileu também seria obrigado a se retratar diante das chamas da fogueira.

A intolerância, portanto, não é privilégio do catolicismo e a hostilidade diante da cultura grassa nos dois arraiais.

A belíssima obra do Padre Ibiapina, por exemplo, também carrega os seus senões. Jovenzinhos que traziam as suas violas e jovenzinhas que traziam as pontas de suas saias para as fogueiras santas, convencidos e convencidas pelos argumentos do pregador, ajudavam a construir um gueto religioso de preconceitos diversos. Contra o samba e contra o corpo, por exemplo. Eles iam cantando, segundo as Crônicas:

“Já morreu o samba
Já venceu Jesus
Ardam pontas e violas
Em honra da cruz
Todos os sambistas
Querem ter prazer
Venham ao pé da Cruz
Ver violas arder.”
(Hoonaert, Eduardo. Crônicas das Casas de Caridade: fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006, p. 89).

Mas a cruzada de Cristo contra a viola e contra o samba foi assumida com muito mais contundência pelo protestantismo brasileiro, demonstrando mais uma vez que em matéria de inquisição o catolicismo nunca esteve sozinho.

As sombras da Reforma que ajudaram a performar as nossas sombras, precisariam ser assumidas por nós, hoje em dia. Erich Fromm, por exemplo, estudando o fenômeno do autoritarismo e de sua introjeção cultural, defende que Lutero e Calvino foram dos homens mais rancorosos da história.

“Lutero e Calvino representam esta hostilidade difusa e generalizada. Isso não só no sentido de que estes dois homens, pessoalmente, pertenceram ao rol dos maiores rancorosos dentre as principais figuras da História, e por certo dentre os líderes religiosos, como igualmente, e o que é mais importante, no sentido de que suas doutrinas foram tingidas por essa hostilidade, só podendo atrair um grupo que também se achasse impelido por uma hostilidade intensa e reprimida.” (Fromm, Erich. O medo à liberdade. 13e. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 84).

Normalmente isso nos assusta; porque a tendência à beatificação e santificação de pessoas concretas, em sua complexidade, é tendência religiosa, de natureza universal. Todas as religiões produzem os seus santos, pessoas que pairam acima do bem e do mal. O perigo é que, escondidas as suas sombras, embarcamos acriticamente em sua luminosidade, esquecidos que sombras são resultantes de luz e, nesse jogo, tornamo-nos prolongamento do mesmo tipo de sombra, fascinados e atraídos pelo mesmo tipo duvidoso de luz.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Protestantismo e Candomblé

A terceira linha de pesquisa proposta pelo CEPESC, “protestantismo e candomblé” se constitui como um desafio, diante de uma violência simbólica responsável por atos de intolerância de diversas naturezas.
As relações entre o protestantismo e o candomblé são complexas, especialmente em sua vivência prática. Afastamento, antagonismo, intolerância, marcam a maior parte das posturas dos grupos protestantes, encontrando-se, porém, mesmo que raramente, atitudes dialogais.
O candomblé no Brasil se caracterizou como religião de resistência da cultura negra, fortalecendo-se gradativamente, em uma forçada clandestinidade, até ser admitida como expressão legítima de religiosidade do povo, tanto quanto as religiões cristãs e todas as outras religiões.
Por outro lado, ainda é generalizado o preconceito que concebe o candomblé, junto com outras religiões de matriz africana e indígena, como forma inferior “primitiva” de culto, sendo a demonização dos orixás um exemplo desse tipo de atitude.
Um olhar não preconceituoso pode enxergar bondade e beleza, ali onde se espera sempre conflito e ambigüidade. O sofrimento causado pela intolerância religiosa nos convida a rever atitudes. Tolerância e respeito são desejáveis urgentemente, mas insuficientes para dar conta da totalidade do fenômeno do qual nos acercamos.
A celebração do outro é o caminho para admitir que a alteridade não ameaça a minha identidade, mas é condição e possibilidade da mesma. A festa da humanidade precisa das diferenças para continuar sendo festa.