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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

PROTESTANTISMO EM DIÁLOGO


Por Marcos Monteiro


Alguns nós de nossa herança teológica precisam ser desatados para que possamos estabelecer diálogo com outras religiões, lembrando que no Brasil o diálogo pertinente só se estabelece com as religiões de matriz africana. Nossas diferenças e semelhanças com os grandes sistemas religiosos da humanidade são interessantes objetos de estudo, mas a religiosidade que nos toca de perto e diante da qual precisamos nos posicionar é exatamente a que resultou da força escrava entre nós dos negros africanos.
               
Diálogo pressupõe entendimento e compreensão mútuos, não significando necessariamente
descarte de identidade. Pelo contrário, a alteridade é necessidade inconteste da identidade. Vamos nos construindo sob o olhar do outro, encarando e sendo encarados, em espaços mais fluidos do que supunha nossa sistematização modernizante.

No Brasil, a questão hermenêutica se estabelece como nó básico e nó górdio, duplo desafio de entendimento para os caminhos de aproximação entre vivências religiosas que se supõem absolutamente divergentes. O que fazer com nossos textos sagrados, ou a questão da Bíblia, tem se tornado cada vez mais questão prioritária, merecendo investigação, discussão, estudo e proposição para que mantenhamos o encantamento dos textos, mas também para que eles não fechem caminhos para as questões mais urgentes de nossa época.

Historicamente o protestantismo aconteceu como processo de enfrentamento do dogmatismo da igreja medieval. A solução, de natureza provisória, foi transferir todo o dogmatismo para as Escrituras Sagradas. Desse modo, a Bíblia tornou-se um voraz buraco negro capaz de ir aprisionando toda a vida do Universo, lugar obscuro do qual nenhuma luz podia escapar. O fundamentalismo encontra sua lógica não somente em um literalismo redutor, mas também nesse movimento de captura da vida pelos textos. Toda a vida foi cercada pelas capas da Bíblia, sendo contida por uma pequena biblioteca de sessenta e seis livros, de natureza diversa, mas obrigada a encerrar toda a diversidade possível.

Portanto, o problema hermenêutico não se resume na questão de interpretação da Bíblia, o problema é a própria Bíblia. Na busca de compreensão da vivência cristã das primeiras comunidades, as representações foram surgindo em sua tentativa de aproximação com a realidade vivida. A presença do feminino no sagrado, por exemplo, pode ter acrescentado gradativamente uma quarta pessoa à trindade, essa complexa tentativa de representação da experiência. A Virgem Maria, portanto, teria completado a idéia junguia
na de quaternidade. Na ruptura protestante, a Bíblia foi se tornando essa quarta pessoa da trindade, alternativa protestante que trouxe diferentes problemas à teologia cristã.

A tarefa é difícil, mas é urgente. A teologia precisa devolver a luminosidade da Bíblia e isso passa pela tarefa de libertar a luz aprisionada gradativamente por essa força dogmática que engessa a vida. A vida tem as suas próprias estratégias de escape às reduções e aprisionamentos. Cada vez mais o diálogo entre protestantismo e candomblé, por exemplo, acontece na prática cotidiana dos fiéis. Podemos fechar os olhos, condenar e rejeitar a tarefa que nos aguarda, ou seguir em frente, atentos aos desafios, sempre prontos para os novos aprendizados.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Uma Utopia chamada Canudos

Por Marcos Monteiro


No nosso imaginário brasileiro e nordestino ergue-se provocante a cidade de Canudos, como uma verdadeira “utopia religiosa”, categoria sugerida pelo pastor Djalma Torres.

Canudos era uma pequena aldeia construída no século XVIII, à margem do Rio Vaza-Barris, no interior da Bahia. Transformou-se rapidamente em uma grande cidade de cerca de 25 mil habitantes, a partir da liderança de Antônio Conselheiro, uma figura mística singular, no nosso Nordeste, que em 1893 chegou ao local e batizou a cidade de “Belo Monte”.

A idéia era essa mesma: construir uma cidade acolhedora, para onde se dirigiam as massas pobres do sertão, em busca de lugar para morar, terra para plantar, e relações sociais saudáveis para se conviver. Essa última parte era garantida pela liderança de Conselheiro que constrói a Igreja, símbolo da presença de Deus no meio do povo.

Antônio Conselheiro foi estudado e classificado por muitos, de várias maneiras. Fanático, comunista, oportunista, beato, revolucionário, são alguns dos adjetivos que recebeu de estudiosos e oponentes. Talvez a classificação de Hoornaert como um místico, no bom estilo medieval, um “negociador do sagrado” o defina bem.

Tento peregrinando por tantos anos pelos sertões da Bahia e de outros estados do Nordeste, sempre construindo igrejas e aconselhando as pessoas, Antônio Vicente Mendes Maciel, recebeu a merecida alcunha de “conselheiro”. Na cidade de Canudos realizava prédicas e mediava situações diversas, apenas com a sua presença simbólica.

Na cidade do Conselheiro havia brancos, índios, negras, pessoas de passado duvidoso ou mesmo violento e eram acolhidos e viviam de modo digno. Somente não eram acolhidos maçons, hereges e protestantes. Esses últimos eram muito poucos em toda a região nordestina, mas o fato levanta questões.

Haveria simpatizantes do protestantismo na Canudos tão católica? Por que a não inclusão de protestantes nessa cidade que acudia a todos os marginalizados de então. São perguntas à espera de respostas, ou de novas perguntas.

De todo o modo, Canudos foi uma cidade construída em torno de uma idéia. Enquanto utopia nunca poderia encontrar um lugar ou um espaço de realização. Enfrentou sistemas e exércitos, mas foi destruída. Sobrevive como herança mítica e como descrição tanto da capacidade e habilidade de pessoas simples enfrentarem a força das instituições, como da possibilidade e impossibilidade de se construir cidadania à margem dos trâmites legais, oficiais ou simplesmente costumeiros.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

PROTESTANTISMO E RELIGIOSIDADE POPULAR

Por Marcos Monteiro


Na nossa pesquisa sobre protestantismo e religiosidade popular, a qual inclui Antônio Conselheiro e sua Canudos, o missionário Padre Ibiapina e o Sertão do Cariri, e o Padre Cícero de Juazeiro do Norte, nos interessa especialmente a questão da relação dessa religiosidade do povo com a implantação protestante no Brasil.

Na mítica Canudos, o conselheiro aceitava todo mundo, menos ateus, judeus, maçons e protestantes. Padre Wilson, um grande amigo, expressou a opinião de que isso seria ou um exagero ou força includente de expressão, até mesmo porque o protestantismo seria praticamente uma inexistência, por aqueles tempos e por aquelas bandas.

Nas Crônicas sobre as Casas de Caridade do Padre Ibiapina, fala-se dos inimigos da igreja de maneira generalizante, embora alguma menção explícita aos “hereges” protestantes da Europa.

Essa relação entre religiosidade popular e implantação protestante no Brasil merece uma investigação mais acurada com algumas questões evidentes.

1. O forte espírito polêmico e proselitista das missões protestantes causa reações públicas da oficialidade católica em jornais, à medida que espalha uma série de folhetos usados para atacar a hegemonia doutrinária católica.

2. Conversão estratégica de padres são exploradas grandemente pelas missões protestantes, produzindo um grande reboliço e provocando reações.

3. Qualquer conversão de católicos ao protestantismo em cidades do interior era suficiente para provocar conflitos e acirrar contendas que iam da disputa dogmática às puras altercações corporais, às vezes chegando a extremos.

4. A pregação do protestantismo era comumente associada à ideologia do progresso, de natureza capitalista, e à modernidade, colocando sempre na conta do catolicismo o atraso e a estagnação econômica.

Talvez essas fossem razões suficientes para imbuir os líderes religiosos populares de forte resistência ao protestantismo, o que ajudava a tornar os fiéis desconfiados e hostis diante da “heresia” que se avizinhava e ameaça a coexistência social.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Protestanticidade e Catolicidade

Catolicismo e protestantismo são grandes construções cristãs que se relacionam de modo complexo. Percorrendo lógicas distintas, cada uma encontra o seu significado e sua relevância no espelho da outra. Lembrando que se as relações complexas incluem conjunção, disjunção, implicação, oposição e contradição, em um grande todo, confluência, afastamento e complementaridade marcam modos dialógicos que acontecem em um processo histórico do qual não se avista o final.
Ambos são respostas históricas ao grande movimento de seguimento à estranha figura de Jesus de Nazaré. Posicionando-se em um momento concreto da história da Palestina, dentro da grande configuração do Império Romano, um desconhecido carpinteiro de uma minúscula aldeia, consegue causar um tumulto suficiente para ser julgado, condenado e crucificado, como um revoltoso, subversivo da ordem estabelecida. Seus crimes, de natureza política e religiosa, não estão esclarecidos, até o dia de hoje, Entretanto, uma série de comunidades surgiram depois de sua morte, afirmando a sua ressurreição, espalhando-se por todo o mundo conhecido, envolvendo especialmente pessoas desfavorecidas, proscritas, mas também, pouco a pouco, trabalhadores comuns, intelectuais e mesmos alguns ricos que gozavam de certo prestígio na sociedade.
Essa multiplicidade de comunidades produz uma multiplicidade de procedimentos, ritos, histórias, discursos e interpretações, alimentando uma tradição predominantemente oral, à qual vão se juntando textos de diversas naturezas e diversos pesos. Esse todo não pode ser homogêneo, portanto, perguntando pelos laços e caminhos que lhe dariam certa unidade e universalidade. O princípio que dirige esse movimento centrípeto dentro dessa força de diversificação, essa pergunta pelo comum e universal, pode muito bem ser chamado de “princípio de catolicidade”. As respostas necessárias para essa tendência à diferença e diversidade devem ser entendidas como contingentes e históricas, mas normalmente não é assim que acontece.
O resultado progressivo dessa busca pela unidade foi a uniformização e padronização das comunidades, garantidas por força institucional nem sempre pacífica. Um grande edifício internacional foi construído: um poder religioso que caminhava com o poder político ou como aliado, ou como subordinado que dava ao discurso político a legitimidade teológica, e até como subordinante, transformando o aparato político em braço secular de seus motivos religiosos.
Na direção contrária, fortes movimentos contestatórios promoviam nuances e matizes diversificadas, utilizando-se de um outro princípio que podemos chamar de “princípio de protestanticidade”, apenas para resguardar a palavra “protestante” para as configurações mais institucionais que inevitavelmente viriam a se estabelecer. Se o “princípio de catolicidade” é de natureza centrípeta, o “princípio de protestanticidade” é de natureza centrífuga. Os movimentos de reforma do século XVI e XVII são confluência desse espírito de oposição a uma autoridade institucional, a qual se constituía como força de conformação religiosa, política e ideológica, responsável pela manutenção da configuração social vigente.
Do mesmo modo que um “princípio de catolicidade” terminou se cristalizando em uma instituição católica, de natureza autoritária, o “princípio de protestancidade” petrificou-se em institucionalização, de um modo diferente, mas previsível. Uma diversidade de instituições protestantes, semelhantes e diferentes, foram surgindo desse outro processo que provoca a unidade da igreja na direção de uma fragmentação cada vez maior. Ambas as configurações tendem a um autoritarismo, mesmo que de cunho diferente.
A instituição católica se configura como cone hierárquico, o qual encontra na figura do pontífice o seu vértice unificador. As instituições protestantes se estabelecem enquanto rede complexa, em que diversos sistemas de autoridade tentam se definir. Um movimento ecumênico já se encontra a caminho há mais de um século, tentando encontrar meios de estabelecer plataformas e procedimentos, em que alguma unidade seja possível, ou que a unidade essencial da igreja cristã (seja isso o que for) torne-se sempre mais visível.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

PROTESTANTISMO E VIDA

Por Marcos Monteiro

 A linha de pesquisa do CEPESC, “Protestantismo e vida” é resultado de uma série de reuniões organizadas em 2008, sob o título “Defesa da Vida”. Pesquisadores e pesquisadoras interdisciplinares e líderes religiosos de diversas denominações discutiram temas considerados de fronteira, clonagem, células tronco, aborto, eutanásia, admitindo que não existe uma ampla discussão protestante, partindo de posições não dogmáticas, que instrumentalize atitudes claras diante da vida em sua complexidade.

O protestantismo, e o protestantismo brasileiro especificamente, faz parte desse grande eco-sistema chamado vida, se consideramos o todo de relações, tecido como um complexo de significações, em que a cultura se constitui como parte relevante. A partir disso, precisamos entender o que significa ser protestante dentro da vida e diante da vida e entender a vida como um complexo vida-morte, onde cada pólo se estabelece como limite e condição.

Para o pensador Edgar Morin:

“A vida é sempre incerta. A morte incerta é sempre certa. Morrer é fatal, necessário, inelutável. A morte está escrita na própria natureza da vida” (MORIN, Edgar. O método 2: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001, p.438).

Não se pode pensar vida sem pensar morte. A morte é estratégia e necessidade da própria vida. Uma e outra andam juntas, meio inimigas meio amantes, coladas fortemente, devorando-se apaixonadamente para permanecerem em sua fortaleza e fragilidade paradoxais.

Um pensamento protestante se estabelece como pensar cristão não dogmático. Tendo sua referência nos textos sagrados e se inscrevendo na tradição teológica que lhe antecede, afirma, entretanto, a única autoridade absoluta do Deus da vida e da morte, desafiando-se a pensar teológica e complexamente.

Palavras Iniciais

Por Marcos Monteiro


Iniciamos aqui uma reflexão que pretende ser semanal sobre "protestantismo e mundo", como parte de um projeto de pesquisa do CEPESC (Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão) e do Portal da Vida, com três linhas intercambiáveis: "protestantismo e vida", "protestantismo e religiosidade popular" e "protestantismo e candomblé".

Partimos de uma definição de protestantimo que abarca toda igreja e grupo religioso que apresente vestígios de continuidade com os movimentos de reforma do século XVI, mesmo quando estes não pretendam se reconhecer no mesmo espelho.

Esse protestantimo se faz presente no mundo concreto, e "mundo" também é um complexo que abarca tanto a experiência existencial de cada pessoa ou grupo, quanto a ordem e desordem social em sua vivência cultural.

Apelamos, portanto, para um contínuo, um campo de significação onde os conceitos e agentes se aproximam ou se afastam de sinais demarcadores, promovendo múltiplas e frutíferas relações.

Pretendemos caminhar devagar e sempre, muito mais peregrino que cientista, admirando a paisagem, colhendo flores e palmilhando caminhos desconhecidos ou não.