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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Ser Protestante no Mundo de Hoje

Por Marcos Monteiro

Se o fetiche da palavra escrita produz a Reforma Protestante, é a invenção da imprensa que se torna mola propulsora, caminho de divulgação das idéias que produzem a crítica da tradição e do dogmatismo e instrumentalizam a insatisfação com o controle autoritário de uma estrutura construída durante a Idade Média, direito canônico que se postava de vigia sobre todos os aspectos da vida.

Um desejo de liberdade, construído de modo marginal, encontrava na personalidade vigorosa de Lutero e Calvino, entre outros, vontade inquebrantável de luta por uma reestruturação da Igreja, lembrando que Lutero inicialmente não propôs rupturas, mas reformas internas de caráter teológico, debate universitário já estabelecido, normalmente julgado de modo acadêmico. As famosas “noventa e cinco teses” são teologicamente moderadas, menos contundentes, por exemplo do que outras 97, escritas e debatidas quase dois meses antes, por ocasião da obtenção do grau de bacharel em Estudos Bíblicos de um aluno, Francisco Gunther, da depois famosa Faculdade de Teologia de Wittenberg. Essas teses passaram despercebidas pela história.

O tumulto causado pelas “noventa e cinco teses” deve-se muito mais a fatores políticos do que religiosos e causa rápida comoção pela rápida propagação possibilitada pela difusão das gráficas capazes de imprimir milhares de exemplares. Oficinas desse teor encontravam-se praticamente em cada cidade da Europa, impressionante rede de reprodução de literatura impressa, menos de um século depois da invenção de Gutemberg.

No final do ano de 1521, já condenado pelo papa e pelo imperador, Lutero encontrou no refúgio do castelo de Wartburg uma dessas gráficas capaz de mantê-lo ativo no cenário político e eclesiástico de então. Época de escritos contundentes e da elaboração de sua maior arma, uma tradução da Bíblia para o alemão popular, capaz de ser entendida pelo povo já se acostumando a um acesso à palavra escrita, impossível em outros tempos. A autoridade e o fascínio da palavra escrita foram estabelecidos como arma contra o dogmatismo eclesiástico e o autoritarismo imperial.

Nesses novos tempos assistimos a fenômenos diferentes e paradoxais. Essa mesma palavra escrita pode agora ser usada não contra o autoritarismo e dogmatismo, mas exatamente para justificá-los. Portanto, de fonte de libertação pode passar a ser usada como fonte de consolidação de opressões e discriminações, esvaziamento e inversão próprios das tradições. As tradições são processos históricos de esquecimento e de afastamento das origens. Curiosamente, as origens também não podem estar acima da crítica, quando isto acontece legitimam paradoxalmente seu próprio afastamento.

Há fenômenos no mundo europeu da Reforma que nos aproximam do mundo de hoje. A imprensa transformou a Europa em uma aldeia, do mesmo modo que as multimídias transformaram o mundo todo em um pequeno vilarejo. Há novidades incomparáveis, porém, nesse novo aldeamento. A palavra escrita vem com uma velocidade igual à da luz, capaz de informar o mundo sobre alguma coisa em segundos. E vem acompanhada. Imagens, sons, músicas, podem ser partilhados imediatamente através das redes sociais de dimensões planetárias.

A polissemia da palavra, portanto, torna-se também polissemia das imagens e de outros elementos estéticos. Não estamos mais no século XVI, igualmente, em todas as facetas da sociedade e da vida. Inevitavelmente todas as questões antigas, mesmo quando permanecem (algumas desapareceram), precisam ser tratadas de outras maneiras. A recorrência de modelos antigos, como as teocracias, por exemplo, tem se mostrado desastrosa. Nesse novo mundo, dentro de nossas diversas tradições, todos estamos procurando respostas a perguntas que rapidamente se levantam e parecem ter caráter de urgência. Ser protestante no mundo de hoje tem de ser parecido, mas também diferente de ser protestante na Europa pós-medieval.

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